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Londres
“Inacreditável, inadjetivável, inaceitável, inominável, vergonhoso, gente sem noção, ridículo, reprovável, inadmissível”. Esses foram alguns dos muitos adjetivos citados para qualificar a indignação causada pela inusitada e muito preocupante ‘’carta de desunião africana’’ endereçada pela embaixada de Angola aos pares africanos acreditados em Lisboa.
No documento, a missão diplomática, por orientação da ‘’Capital’’ (governo de Luanda), informou que não participaria na cerimônia oficial da celebração do Dia da África (25/05), evento ocorrido em 29 de maio. Motivo: inclusão na lista de convidados da cidadã luso-angolana, Luzia Moniz, contrariamente ao que havia sido acordado em reunião do grupo, segundo a carta, por seu ativismo contra o presidente de Angola e seu governo.
‘’Não me calarão!’’, reagiu de pronto a jornalista, socióloga e panafricanista, também ausente no evento por razões de saúde, em artigo de opinião publicado (07/06) na sua coluna quinzenal ''Tunda Mu Njila'' (Sai do Caminho, em língua nacional kimbundu) no semanário angolano ‘’Novo Jornal’’, NJ. A também presidente da Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana esclareceu que desde 2017 faz a abertura da cerimônia oficial das comemorações do Dia da África, em representação da Diáspora, com o apoio de todo o Grupo Africano, excepto Angola.
Luzia é, assim como Steve Biko em I write what I like (Eu escrevo o que eu quero), dona de sua própria palavra. Tal como o líder sul-africano, fundador do Movimento da Consciência Negra, não temia escrever e falar para denunciar os males do regime do apartheid, a ativista do panafricanismo revolucionário e libertador também não se demite de exercer o seu direito de escrever e de vocalizar o que quer acerca de suas ideias, reflexões e inquietações sobre Angola, a África e o Mundo.
Mesmo à distância, em situação ‘’mais confortável’’ mas não menos válida e arriscada para o fazer quando se desafia qualquer poder, ela não perdeu seus ideais temperados com essências revolucionária, socialista, panafricanista e internacionalista nos primórdios da independência quando militava nas fileiras do MPLA, Angola era uma República Popular e o pouco que havia era repartido por muitos porque o mais importante era resolver os problemas do povo, como então defendeu e orientou o presidente Agostinho Neto.
Não quero com essa analogia compará-la ao grande líder estudantil sul-africano brutalmente morto nas masmorras do apartheid cujos escritos e falas conscientizavam e mobilizavam a população negra na África do Sul e mundo fora. Nem ela aceitaria ser comparada ao mártir revolucionário e socialista que está hoje no panteão dos heróis da luta anti-apartheid, sobre o qual Mandela disse: "Eles tiveram que matá-lo para prolongar a vida do apartheid''.
Como africanos e diaspóricos desejosos de um continente livre, pujante e respeitado, queremos que ela, como AFRICANA, africaníssima, nos represente da melhor forma que souber e puder no lugar onde optou por viver e ser cidadã de pleno direito. Nunca será, e jamais se verá a si mesma, menos africana por isso, tal como a igualmente africaníssima, provavelmente a maior panafricanista e anti-imperialista dos nossos dias, Arikana Chihombori-Quao, nascida no Zimbabwe, com cidadania ganense e estadunidense, jamais se verá a si mesma, ou vista por nós, como sendo mais yankee do que africana.
Recordemos Kwame Nkrumah: ‘’Eu não sou africano porque nasci em África, mas porque a África nasceu em mim’’. Assim, menos africanos serão os que governam países do continente tendo dupla nacionalidade e sem ter a África nascida em si. São os que Amílcar Cabral, na sua magistral, revolucionária e pedagógica obra, ‘’Nacionalismo e Cultura’’, disse fingirem ser africanos mas não passarem de lacaios e cachorros dos brancos.
Com a tática colonialista de ‘’dividir para reinar’’, exercitada de forma tristível, abriu-se a ''boceta de Pandora'', como escreveu de forma crítica e metafórica a professora e ensaísta africana, da Universidade de Lisboa, Inocência Mata, no seu livro ‘’Suave Pátria: reflexões político-culturais sobre sobre a sociedade são-tomense’’. Reações de indignação não se fizeram esperar, gerando ondas de solidariedade pública e particular para com a panafricanista, elevada à categoria de ‘’inimiga pública’’ número um da ‘’Capital’’ em Portugal.
"Como é que em pleno século 21 se permite esse tipo de intolerância política e se cometem essas aberrações diplomáticas?", questionou, perplexo, Armindo Laureano, diretor do NJ, o mesmo jornalista que, quando da visita de Lula à Angola (25 e 26/08/2023), inquiriu o presidente brasileiro sobre a omissão nos seus discursos do nome do finado presidente José Eduardo dos Santos e acerca da invisibilidade da África na teledramaturgia brasileira, sendo o continente um dos principais, se não o principal, pilares de fundação do Brasil.
Outras vozes se manifestaram perplexas e indignadas no mesmo jornal: "Decidiram fugir de um evento oficial sobre África em plena campanha do país para a presidência da União Africana", criticou o jornalista Manuel Matola; "Não é com a política de exclusões que se constrói um país'', atirou o jornalista Ilídio Manuel; ''Os países democráticos não combatem os seus cidadãos com cartas assinadas por uma funcionária diplomática acreditada no país'', disse João de Barros, ex-ministro da Informação da Guiné-Bissau.
Por outras vias e nas redes sociais, multiplicaram-se manifestações de incredulidade indignada: ''Que ridículo, uma instituição de representação diplomática se posicionar diante dos seus pares desta maneira, com tantas questões relevantes a serem tratadas. É vergonhoso'', lamentou Silvany Euclênio, histórica militante do movimento negro brasileiro e editora do canal Pensar Africanamente; "Absurdo, mais um tiro no pé, inadjetivável'', resumiu Elizabeth Cruz, socióloga, professora universitária e autora; "Inominável! Podemos até discordar do que Luzia possa dizer, mas isso é simplesmente inacreditável'', manifestou Inocência Mata.
"Inacreditável que, em pleno século 21, uma instituição do Estado angolano procure ostracizar junto de todas as missões diplomáticas africanas sediadas em Lisboa, a cidadã Luzia Moniz, por causa de artigos publicados no "Tunda mu Njila", do NJ, escreveu Manuel Dias dos Santos, sociólogo, historiador e membro-fundador da Plataforma de Reflexão Angola. "Essa gente envergonha-nos'', qualificou o veterano jornalista, Graça Campos, em artigo postado no seu FB/Meta, retratando Angola como um ‘’país que ficou lá atrás, na Idade da Pedra’’.
Como aconteceu com Luzia, vimos, só nos últimos meses e semanas, decisões e tentativas similares de silenciamento de inúmeros jornalistas, ativistas, acadêmicos, estudantes, políticos e opinion makers também no ‘’maravilhoso mundo democrático ocidental’’. Gente detida, ameaçada, silenciada e/ou despedida, impedida de viajar por ter opinião crítica aos seus governos no tocante às guerras na Ucrânia e na Palestina.
Não desejo com isso relativizar a absurdez, mas apenas lembrar Gramsci e o ‘’tempo de monstros’’ em que vivemos, no qual velho já morreu e está sombrio o nascimento do novo. No interlúdio, aproveitando para fazer suas maldades, emergem monstros fantasiados com várias máscaras: uns, de defensores maiores dos direitos humanos; outros, de campeões do que veem como o inegociável direito de liberdade de opinião e de expressão; outros mais, de democratas.
Quando encarceraram a liberdade de imprensa e de opinião juntamente com Julian Assange poucos deram importância para a gravidade da situação. Uma exceção porque coisa assim, terão pensado, só acontece em países com governos suspeitos de sempre como a Rússia, China, Venezuela e nos mabululus (confins, na língua kimbundu e outras de Angola) do mundo.
Em 2 de janeiro passado, Claudine Gay, primeira mulher negra a chegar à presidência da prestigiada universidade estadunidense de Harvard, foi forçada a renunciar sob uma forte campanha de difamação conduzida por ideólogos e apoiadores sionistas com alegações de plágio e de permissão do “antissemitismo” na instituição. Ainda no início de janeiro, o jornalista Breno Altman, editor do ‘’Opera Mundi’’, descendente de judeus e crítico contundente do sionismo, também foi por este motivo acusado de antissemitismo. Teve contra ele sete ações judiciais movidas pela Confederação Israelita do Brasil.
Yanis Varoufakis, o conhecido ex-ministro das das Finanças da Grécia durante o governo do Syriza, foi impedido de se pronunciar em mensagem de vídeo para uma conferência dedicada à Palestina em Berlim (12/04), evento abruptamente interrompido pela polícia. Está banido de usar a palavra na Alemanha por causa de suas ideias em defesa da causa palestina. Ainda em abril, a jornalista britânica apresentadora de rádio e televisão, Sangita Myska, foi afastada da LBC, uma das principais estações radiofônicas da Inglaterra, ao que tudo indica, devido às entrevistas duras que fazia aos porta-vozes do regime sionista de Israel.
No começo de maio, o vencedor do prêmio Pulitzer e antigo editor do New York Times, Chris Hedges, crítico de longa data da política externa estadunidense, fato que levou ao seu afastamento do NYT, teve o seu programa de política cancelado na Real News Network. Ainda no início de maio, em Cabo Verde, país referenciado por muitos como exemplo de liberdade de imprensa em África, a Ajoc, associação sindical que representa os jornalistas cabo-verdianos, defendeu a realização de um debate sobre o que considera ser uma descida "muito preocupante" das ilhas no índice anual de liberdade de imprensa.
Segue maio, o cirurgião britânico-palestino Ghassan Abu Sitta, reitor da Universidade de Glasgow, foi detido (dia 0/4) por autoridades francesas logo após a sua chegada ao aeroporto Charles de Gaulle, Paris, e obrigado a retornar a Londres. A sua viagem visava participação em eventos nos quais foi convidado para falar sobre sua experiência como médico na faixa de Gaza. Em meados do mesmo mês (dia 13), o renomado historiador judeu e crítico de Israel, Ilan Pappé, foi detido à chegada ao aeroporto de Detroit, nos EUA. Antes de entrar, foi interrogado pelo FBI por duas horas, tendo seu celular apreendido e só devolvido depois de copiadas todas as informações do dispositivo.
Em junho corrente (dia 0/3), o antigo marine e inspetor de armas nucleares da ONU, Scott Ritter, foi proibido de viajar para a Rússia onde iria participar no Fórum Econômico de São Petersburgo (de 5 a 8) quando estava a bordo do avião em Nova York. Os agentes que apreenderam o seu passaporte e o removeram à força disseram que estavam a cumprir ordens do Departamento do Estado. Na quinta-feira (06/06), a ex-secretária de imprensa de Bernie Sanders, Briahna Joy Gray, anunciou no Twitter/X que finalmente foi demitida do ‘’The Hill’’, um dos principais portais de notícias dos EUA, por causa de suas críticas ao governo sionista de Israel.
Da “Capital” ao Ocidente do democratismo: ‘’como é que são democratas nessa opressão descarada?’’ Mário Gama, na canção “Presidente”, fez o questionamento, atual, ao regime colonial tuga, apelando a Agostinho Neto para que caminhasse em frente na libertação do povo angolense. Luzia não se calará, como Biko não se calou enquanto podia escrever e falar. Não sendo Biko, continuará bikista, escrevendo o que ela quer na denúncia de injustiças em África e mundo fora. Cabralista, seguirá dizendo verdades na cara, mesmo que estas carreguem dificuldades.
Ao manter-se sólida no essencial dos nobres ideais que a formaram, a mana nos ilumina e anima fazendo-nos lembrar, constantemente, com o que escreve e diz, daquele momento de Aníbal descrito por Pepetela na Geração da Utopia: ‘’a um dado momento, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele”. Talvez seja essa insistente lembrança brutal vinda da panafricanista que inferniza algumas consciências da “Capital " e, com ela, talvez o receio do advento de nova safra de puros e desinteressados apenas pensando no povo e lutando para resolver os seus problemas.
Até ao momento do fecho deste artigo não era conhecida uma única reação esclarecedora da ‘’Capital’’ face a tamanho absurdo diplomático. Concluo como escreveu o poeta e ensaísta são-tomense, Frederico Gustavo dos Anjos, em “No Lugar da Oração da Sapiência”, texto de sua intervenção na abertura do Fórum Nacional de Cultura em São Tomé (de 21 a 26 de novembro de 2011): ‘‘Anima-me ainda poder prever o amanhã, porque tive um ontem de que não gostei.”
Juntos, com Luzia, matutemos!
Íntegra da resposta de Luzia Moniz ao governo da “Capital” em:
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